UM OLHAR SOBRE SER PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO HOJE
A primeira frase no artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos é de uma clareza lapidar: «Todo o ser humano tem direito à instrução.». Ou seja, as crianças e jovens com NEE não podem ser deixadas para trás. Esta tão assertiva forma de nos expressarmos deriva do momento muito preocupante por que passa o sistema educativo, com a falta de docentes, com a entrada de pessoas para o ensino sem as habilitações necessárias, com o futuro negro que se adivinha com o grande número de docentes que se vão aposentar e com a falta de atractividade da profissão. Acresce que a formação inicial e contínua de educadores e professores baixou de qualidade. É nestas circunstâncias que nos propomos lançar um olhar sobre o profissional de educação hoje.
A Lei de Bases do Sistema Educativo [1986], produzida e aprovada num tempo em que já se havia dado a massificação do sistema educativo e a consequente explosão numérica do corpo docente traça um perfil do educador e do professor com o grau de exigência que considerava adequado a quem, nos finais do século XX, tinha de trabalhar com uma população estudantil muito diversificada, o que impunha, de facto, rigor e seriedade nos critérios de selecção dos docentes, cujo perfil foi definido por António Nóvoa como o de "profissionais reflexivos que devem deter os meios de controle sobre o seu próprio trabalho, no quadro de uma maior responsabilização profissional e de uma intervenção autónoma na organização escolar". Até porque, como escreveu Rui Grácio, "um mundo novo exige um novo ensino, um novo aluno e um novo tipo de mestre". Um mestre muito para lá do "missionário" ou do simples transmissor de informação.
Um mestre que deve, como queria Nóvoa, assumir a sua autonomia mas não como uma forma de individualismo absoluto exercida numa sala de aula encarada como uma impenetrável torre de marfim. Tal seria pensar que a renovação e inovação da e na escola se alcançariam com o esforço solitário de cada professor, quando a realidade mostra que aqueles caminhos só são passíveis de serem trilhados, com proveito individual e da comunidade, se forem construídos colectivamente, sob o impulso de um projecto plural assumido pela escola. Aliás, quanto mais vasta e variada for a participação de cada professor no projecto colectivo da escola mais rica será a autonomia desta. Esta autonomia profissional também se demonstra, a nosso ver, através da capacidade de pensar, planificar e executar procedimentos e de decidir, a cada momento, de forma comprovadamente criteriosa. Tal exige do professor uma argúcia perceptiva ampla e diversificada, acompanhada do poder de engendrar permanentemente as atitudes, os gestos e os comportamentos relacionais mais ajustados, que ganham um enorme realce quando se trabalha com crianças e jovens com NEE. Deste ângulo, estamos a perspectivar, como Torres Santomé, a seguinte necessidade: "o professor como investigador na aula terá que redefinir constantemente a sua prática à luz das suas próprias ideias e ideais", assente naquilo a que se chama "cultura profissional" dos docentes - o acervo de conhecimentos, de técnicas, de valores e de linguagens cuja amplitude e profundidade aliadas a uma rigorosa e eficiente utilização nos mostram a qualidade profissional do docente.
Não é a aceitação existencial da tradição, do que se tornou institucional, que se pede ao docente neste dealbar do século XXI, antes, pelo contrário, o que se lhe aponta são os fascinantes caminhos da inovação.
Citando de novo Rui Grácio, diria que os tempos de hoje determinam que os educadores e professores sejam exigentemente seleccionados, o que implica também uma formação contínua adequada e de qualidade, e simultaneamente que o poder político transforme uma escola selectiva e centrífuga para grande número dos alunos numa "oficina onde a experiência se devia ordenar, ou aceitar que se ordenasse, de maneira a garantir a cada um, no encontro com o real e com os outros, o encontro de si mesmo; ou melhor: o constante reencontro, a intérmina reconstrução de si mesmo, pois que o eu não é um dado, mas uma conquista, uma reconquista incessante. De qualquer modo: a oficina onde se forja a autodeterminação de um destino pessoal para satisfação própria e o proveito do bem comum".
Em síntese, é legítimo afirmar que aos profissionais de educação se exige, hoje, uma face reflexiva, interventiva e reivindicativa mas também a consciência de que o seu perfil profissional se constrói e reconstrói com a problematização de questões e a produção de respostas adequadas às circunstâncias que emergem do contínuo movimento da História.
Paulo Sucena
Dezembro 2024
Dr. Paulo Sucena
Dedicou 15 anos da sua vida profissional à formação de professores como orientador de Teses de Exame de Estado, orientador de estágio, orientador pedagógico e dinamizador de cursos para delegados de disciplina e directores de turma, em diversos distritos do país.
Foi vice-presidente do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL) de 1987 a 1989 e seu presidente de 1989 a 2006.
De 2006 até hoje: presidente do Conselho Geral do SPGL.
Membro do Secretariado Nacional da FENPROF de 1987 a 2007 e Secretário Geral de 1994 a 2007.
É membro do Conselho Nacional de Educação desde 1994.